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Balas Perdidas

Era final de tarde em Ilhabela, um Sábado como outro qualquer, a única coisa que tornava aquele especial era o mergulho, que havia sido daqueles inesquecíveis. Havíamos localizado (novamente) e penetrado um dos casarios da proa do Príncipe de Asturias, tres de nós, todos com certificação em trimix e technical wreck, um foi tender e permaneceu do lado de fora, enquanto dois se aventuraram na exploração.
De volta a nossa base, enquanto alguns descarregavam equipamentos, outros iniciavam os preparativos do churrasco, amigos chegavam como é habitual e se juntavam a nós, ouvindo as estórias daquele dia de mergulho.
Como a casa é sempre aberta, o que começou como uma reunião de meia dúzia de pessoas envolvidas na operação, logo se transformou numa “muvuca” de mergulhadores, foi num momento de silêncio, quando eu me afasto e fico analisando de longe, que me surpreendeu a diversidade encontrada no meu quintal, de open water diver a instrutor de mergulho técnico, de novato a coroa (não vou citar nomes para não entregar os coroas) tinha de tudo ali numa verdadeira exposição de fauna submarina.
Nesse momento, comecei a prestar atenção a todos que estavam ali e principalmente no rumo da conversa, pois discutiam os prós e contras das várias técnicas de penetração em naufrágios.
Lembrei-me de uma reportagem bem antiga, do Aquacorps de Michael Menduno que falava de Wah Wah diving, mergulho profundo a ar, numa época em que o mergulho técnico era uma criança engatinhando e que a paixão exaltava os animos, tornando as discussões muito mais acaloradas.
Gillian ironizava os “uãnabis” depois de um mergulho a mais de 100 metros de profundidade com Joe Odom, onde eles usaram uma S-80 cada, Gillian retornou a superfície com mais de 1000 PSI no seu cilindro, obviamente, era ele o cara que sabia como faze-lo, seu RMV e seu controle respiratório eram algo indiscutível, mas o questionamento no Aquacorps era a divulgação ou não, quantas pessoas tinham as características de Bret Gillian ? Quantos, inclusive recém chegados ao mergulho técnico, não estavam se acidentando, as vezes fatalmente, por tentar perseguir técnicas e “feitos” de mergulhadores muito mais experientes ?
Aqui no Brasil nos limitávamos a saber das notícias por revistas e reportagens, ainda não havia a internet e o mergulho na terra Brasilis evoluia a passos lentos.
A coragem que separava os mergulhadores dos “super-homens” da época, era muitas vezes sinônimo de morte, mas ali naquele momento, eu via pessoas que nunca tinham visto um navio com condições de penetração discutindo técnicas que só conheciam por livros, se é que as conheciam.
Quando Bret Gilliam escreveu que respirava ar a 2.8 ATA de PPO2 ele foi malhado por várias agencias que diziam que mergulho técnico era suicídio, hoje vemos muitas dessas agências vendendo treinamento técnico....

Uma delas, em especial, chegou a dizer que nitrox era algo muito complexo e arriscado para o mergulho recreacional, demorando anos para aceitar o treinamento, hoje vemos mergulhadores e mais mergulhadores nitrox recebendo carteirinha dessa agencia....

Não vou fazer o papel de advogado do diabo, mas existem características e habilidades pessoais que são inquestionáveis, tentar generalizar e criar um padrão, baseado em extremos é burrice pura, então, considerando que o equilíbrio é sempre a situação mais interessante, embora seja contrário ao movimento e contrariando o movimento nós estamos literalmente parados, pode ser no tempo, pode ser na linha evolutiva, mas voltando a esse equilíbrio, eu diria que nem tanto a negação do mergulho técnico, nem tanto aos extremos do mergulho profundo a ar.... mas onde é o equilíbrio ???

Pessoas vão ter que se expor, pessoas vão definir os limites aceitáveis, mas esses limites só se definem por experimentação, se alguém não for lá, se ninguém experimentar não há como dizer se é bom ou ruim, além disso, zona de conforto é algo pessoal.
Voltando a mesa eu lembrava de navios com espaços apertados, de gaiutas onde eu entrei de pé, sem as nadadeiras, de situações de no-mount, onde o equipamento principal era deixado com o tender e eu penetrava apenas com uma stage de fundo, de situações de inssurgência, onde muitas vezes cortei as mãos me agarrando a estruturas do navio para fugir do fluxo de água, de ressurgências que me jogaram para trás, de encontros com grandes peixes, do xerne na corveta, dos meros do Campos, de situações onde o orientação fica prejudicada pela posição do navio, de navios que começam em posição de navegação e terminam adernados, lembrei de ter nadado para um lado pensando ir para o outro, lembrei de seguir a proa pensando seguir a popa, isso em navios onde já havia mergulhado várias vezes e principalmente lembrei das situações de visibilidade zero.
Lembrei de instrutores dizendo aos seus alunos para clipar as stages do lado de fora do navio e lembrei do Doria, o grande “diver killer” e de quantos mergulhadores morreram de doença descompressiva depois de ter perdido seu gás de deco e estourado o planejamento, em pânico, procurando suas stages, em algum lugar no navio, lembrei do livro do Bernie e do U-Who.
Quando nós ouvíamos o Wah, do Wah Wah diving, mergulhando abaixo de 50, 60 metros com ar comprimido, tinhamos medo, não do barulho nem da narcose, mas do julgamento, do julgamento de nossos ex-instrutores, do julgamento do público, do julgamento dos outros mergulhadores, tinhamos plena consciência de que se tratava de situação limite, mas o prazer da exploração falava mais alto que a lógica, se houvesse um anjo bom e um anjo ruim, a lógica seria o anjo bom, dizendo para você abortar o mergulho e subir imediatamente, o prazer da exploração seria o anjo mal, dizendo que aquele passagem no casco era suficiente para você penetrar....

Mas, voltando a Menduno e a minha churrasqueira, o mergulho técnico, por muitos no passado taxado de suicídio hoje é uma realidade incontestável, quem a negar, nega a evolução natural.
Hoje se confunde mergulho técnico com mergulho de exploração, o mergulho técnico tem limites definidos, na exploração você nunca sabe o que vai enfrentar, explorar sem experiência é como mergulhar sem treinamento nenhum, é preciso exposição gradativa, é preciso criar reflexos e reações mecânicas e isso só vem com experiência e tempo, não há um curso que ensine em uma semana e experiência de muitos anos, além disso os limites são menores ainda, as tolerâncias são menores e para complicar ainda mais, as possibilidades de encadeamento de erros são sempre muito maiores.
A zona de conforto, deve, e só pode, ser estendida lenta e gradativamente, aumentando junto com a experiencia do mergulhador..
Mas ver mergulhadores com pouca experiência expostos a um volume de informação que eles ainda não podem suportar me fez questionar o nosso real papel no mergulho, quantos jovens não terão se aventurado, em mergulhos sem retorno, após ouvir estórias de outros mergulhadores mais experientes ?
Quantos não começam a achar penetração uma coisa normal depois de tantos videos, depois de tanto ouvir e ver a respeito ?
Quantas pessoas, sem treinamento adequado, ou com treinamento para outros tipos de ambiente não estarão se expondo a um risco enorme devido a “popularização” da exploração de naufrágios ???
Quando me habilitei a instruir Technical Penetration Wreck eu me questionei e por alguns momentos cheguei a pensar que nunca certificaria ninguém, pois não conseguia imaginar uma penetração, com alunos, em ambiente técnico onde os riscos fossem “toleráveis”.
Meu ponto de vista não mudou muito, ao longo o tempo apenas alguns mergulhadores do G.P.S. (Grupo de Pesquisas Subaquáticas) foram credenciados.
Toda vez que me lembro de navios onde a visibilidade caiu a zero, transformando um mergulho de puro prazer em um extenuante exercício de alto controle, me questiono sobre os padrões de treinamento, sobre a capacitação, física e principalmente mental e psicológica.
Hoje escrevi a uma amiga, num momento de pressa, que penetração era algo fácil, desde que se soubesse como, ela me respondeu que após mais de 15 anos mergulhando em navios ela também acreditava que sim.
Questionei-me novamente sobre o que vemos por ai, sobre como avaliamos alunos em situação de stress, sobre como eles responderão numa situação real, se eles saberão como agir e reagir, se eles controlarão a frequencia respiratória para que o CO2 não mande o raciocínio para o inferno, se eles não se desorientarão, se eles não se moverão de forma descontrolada levantando muito mais suspensão, se eles não tentarão abrir um buraco no casco com a cabeça....

Um velho amigo me dizia que existem tres maneiras básicas de aprender a mergulhar : mergulhando, mergulhando e mergulhando.
Quando vejo hoje um aluno iniciar um curso básico e tres meses depois encontro o mesmo aluno com uma dupla nas costas e um par de stages penduradas me pergunto se não são caminhos muito curtos, aliados a falta de experiência que causam tantos acidentes.
A evolução do mergulho e a nossa própria evolução, ao longo dos próximos anos nos trarão mais algumas respostas, visto o questionamento ser mais de ordem filosófica que técnica, não serão novos equipamentos ou novos procedimentos, mas o nosso amadurecimento como mergulhadores, como instrutores, como formadores de opinião e principalmente como homens, que iluminará porões onde hoje só existem sombras.
Enquanto isso, receamos expor nossas experiências, algumas vezes com medo do nosso próprio passado, outras, temendo que vejam o que fazemos, com medo de nosso presente, mas assistindo atônitos e petrificados certificações serem transformadas em balas perdidas.
Hoje descobri que existem agências que certificam solo diver, contrariando aquilo tudo que nós aprendemos e ensinamos ao longo desses ultimos anos como conceito básico de segurança, pior que as balas perdidas, nós estamos no fogo cruzado !


Abraços e bons mergulhos

Marcelo "Moorea" Polato (01/2002)

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