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El Capitan


Era uma tarde de sol daquelas típicas de verão na Ilhabela, como estávamos em plena quinta feira, as levas de turistas ainda não haviam aportado e era possível caminhar e enxergar o mar da praia.
Estava com meus dois filhos, apreciando o mar e degustando minha cerveja na praia, como é merecido a todo guerreiro no seu dia de descanso, entre brincadeiras e perguntas insistentes, que definitivamente entrou na fase do “porque” aos 7 anos de idade, tentava eu imaginar uma razão para existirem ouriços azuis e pretos e poder satisfazer a sua curiosidade infantil depois de uma sessão de snorkeling.
Menos preocupado com o porque das cores dos ouriços me chamava para nadar, pensei comigo mesmo que precisava do telefone de algum biólogo e que algumas das perguntas mais simples das crianças nunca tinham sido feitas por nós adultos, e que talvez, em função dessa curiosidade natural delas, nos poderemos ter um mundo melhor na próxima geração, principalmente devido a uma melhor compreensão das coisa simples que nos cercam. (ouriços são uma coisa comum para o pessoal lá de casa).
Meu devaneio foi interrompido pela súbita chegada de uma turma (ou bando, pois mamíferos andam em bando) de mergulhadores, eram 7 pessoas, 2 meninas entre eles, idades variavam entre 20 e 35 anos aparentemente, disse as crianças que fossem nadar as duas juntas, para poder observar com mais detalhes o bando que se aproximava, 3 deles vinham carregando um bote inflável, deixaram o bote na praia e voltaram para buscar um motor de 25 hp, as meninas começavam a fazer viagens carregando tralha de mergulho, sacolas, cintos de lastro, reguladores, pensei em como deveria ser bom para a mulher estar a bordo de um barco cheio de gentis cavalheiros, onde não fosse permitido as senhoritas carregar peso, mas acabei achando muito melhor o lado masculino, braços mais fortes fazem todo peso parecer menor.
Surge um eu parecia ser o chefe, usava óculos escuros e camiseta dos SEALs, (Sea Air and Land, unidade de elite americana treinada para atuar no mar no ar e na terra) rapidamente começou a dar ordens em tom bastante elevado e ríspido na praia mesmo, inicialmente imaginei tratar-se de algum tipo de treinamento, mas vasculhando o banco de dados cerebral e tentando lembrar de todos os standards que eu conhecia não achei nada que sequer de longe lembrasse aquilo.
Enquanto ele dizia que não queria ver ninguém “desperdiçando” ar no colete, eu tentava na minha infinita ignorância imaginar porque o ar no colete seria desperdício, lembrava ainda de uma matéria numa revista americana muitos anos atrás, onde o colunista falava sobre a importância de manter o colete limpo, se possível até desinfetado, para que, numa emergência, se você precisava respirar o ar de dentro dele (?!?!?!?) não houvesse risco de infecção pulmonar.....

Nosso amigo continuava, dizendo que para ele todos ali eram mergulhadores e que entre mergulhadores não havia distinção de sexo, portanto não haveria nenhum tipo de facilidade para as meninas, novamente, desliguei o ouvido que ainda funciona para imaginar a cena, eu, com meus 1,82 m e 115 quilos, que sempre me senti confortabilissimo com uma dupla de 18 litros nas costas, pedindo a uma gentil senhorita, ou apenas mergulhadora como “qualificava” meu amigo, que erguesse meu equipamento a bordo, o resultado, se não fossem muitas risadas seria um acidente com certeza.
“El capitan” continuava seu briefing militar, dizendo que o naufrágio seria explorado a partir da popa, nesse momento um flash iluminou minha obscura mente e pude perceber que meus divertidos colegas de hobby fariam uma visita ao Aymoré, um pequeno navio naufragado entre 6 e 10 metros de profundidade a mais ou menos 300 metros de distância da praia.
Chamar de exploração era utilizar a palavra errada, muito pouco tinha sobrado do pobre navio, pilhado, dinamitado, remexido pelas suas preciosidades e por bagulhos que atraem pessoas sem escrúpulos que insistem em retirar souvenirs dos navios, o máximo que se encontrava por ali eram cartuchos vazios e deflagrados de calibre 7x57 mm utilizados no passado em fuzis Mauser 94 e 98, mas, decidi deixar de lado a chatice que insiste em assolar todo mergulhador velho, abandonando minha perseguição a terminologia adotada por “el capitan” e voltar ao briefing da “exploração do Aymoré”.
Começaram a preparar os equipamentos, “El capítan” usava um cilindro de 18 litros, vulgo “mamadeira” em dias passados, um colete bem desbotado me fazia acreditar que ou ele havia alugado a peça na promoção de alguma operadora ou realmente tinha muito tempo de mergulho, quando o regulador foi montado e eu percebi a ausência de octopuss comecei a pensar que os cuidados que tomamos, desde o treinamento de novos alunos de scuba diver até a formação de instrutores, todos aqueles discursos que fazemos falando de segurança muitas vezes são em vão, quando coisas mínimas como redundancia de gás são abandonadas em nome de preguiça, ignorância ou economia. Como ninguém me conhecia, me fiz de bobo e rodeando “El capitan”, que imediatamente percebeu que eu o observava, perguntei a ele o porque da ausência do octopuss, dizendo que num curso que eu havia feito tempos atrás, me foi ensinado que era um equipamento obrigatório.
Rápido e objetivo, ele repondeu que os mergulhadores treinados por ele, eram obrigados a ser auto-suficientes na água e que numa pane de regulador, o mergulhador era treinado para respirar direto na torneira do cilindro.
Como percebi que esticar o assunto seria totalmente em vão, pois normalmente eu sou o “mala” da estória, imaginei nosso amigo, “El capitan” em falha de gás, cilindro seco, compartilhando a “torneira” do cilindro do seu dupla ao invés do octopuss e fazendo uma subida bem “confortável”.
Vasculhei ainda memória rapidamente, tentando lembrar de algum regulador, como “El capitan” havia dito, que em caso de pane não se mantivesse aberto (down stream) lembrei dos antigos poseidon, da válvula piloto que trava e pode até explodir e de como os engenheiros contornaram o problema colocando uma válvula de alívio no engate da mangueira com o segundo estágio e que mesmo neles, seria possível respirar, entre muitas bolhas, mas seria possivel respirar em caso de pane.
Continuei imaginando quem seria o instrutor que em seu plano de mergulho prevê apenas uma falha de regulador e que não imagina que seu aluno, por um fator simples como distração, pode ficar, efetivamente, sem ar dentro dágua e como poderia, numa situação dessas, ser ridiculamente inútil tentar respirar na torneira como todos nós, tiozinhos do mergulho, aprendemos muitos anos atrás, concluindo, depois de alguma experiencia acumulada, que essas técnicas além de serem infundadas, a exceção do aspecto “habilidade” (aspecto esse questionável) não apresentaram nenhuma aplicação que justificassse seu emprego.
Balancei a cabeça, fingindo concordar com um quase mudo “hum hum” e voltei a minha long neck.
O grupo se equipou. embarcaram no bote, seguindo a ordem unida ditada por “El capitan” e foram ao mergulho.
Livre do embaraço que seria rir na frente do palhaço travestido de instrutor de mergulho, soltei uma sonora gargalhada, enquanto perguntava curiosa o porque da minha risada meus pensamentos se desviaram para os riscos, as possibilidades de acidente e um frio me percorreu a espinha quando imaginei que “El capitan” provavelmente não ensinava seus alunos nem mesmo a mergulhar em duplas, baseado no principio da auto suficiencia, cada um devia ser treinado para se virar como pudesse.
Imaginei mergulhos passados, exploração de grandes navios e lembrei de muitos momentos de solidão dentro da água, perda de visibilidade repentina, cabos quebrados e aspirados, várias vezes me vi separado, sem que nada pudesse ser feito, do meu dupla ou do resto do time, mas no mergulho técnico é diferente, existe redundancia total de gás, no caso de uma falha, um cilindro pode ser isolado, mantendo o mergulhador com 50% do seu suprimento de gás, no planejamento, normalmente apenas 1/3 de gás é utilizado no fundo, em situações extremas planeja-se o uso de ¼ apenas, mas numa situação de “solo diving” a medida sensata e a única medida lógica, é o inicio imediato da subida, todos nós no G.P.S. sabíamos e praticávamos isso sem questionamento.
Tentava entender o critério de seleção do instrutor, várias vezes, pessoas haviam me contactado, pedindo informações sobre cursos e preços e na maioria das vezes o ponto principal era o preço, conclui que algumas economias, como o octopuss por exemplo podem sem dúvida, somadas a outras mais, como filtros não trocados, cilindros sem limpeza e teste hidrostático, lubrificante impróprio em compressores, reguladores que deveriam estar em museus a não na água poderiam baratear muito um curso de mergulho mas será que os riscos, inclusive os riscos a vida do mergulhador justificariam essas “economias”.
Conclui que o mergulhador iniciante, ou o candidato a mergulhador nunca seria capaz de entender esse universo periférico do mergulho, nunca seria capaz de compreender porque existem cursos que custam 2 ou até 3 vezes mais do que outros, mas “El capitan” era a prova viva disso, olhando o equipamento, vendo os alunos carregar o motor de popa, vendo a postura do nosso “explorador de naufrágios” eu tinha certeza disso.
Tentei ainda entender aquelas pessoas, o que os levaria a transformar algo, que deveria ser exclusiva diversão em um treinamento de SEAL ou UDT (Underwater Demolition Team), transformando o prazer de ver peixinhos ou navios num extenuante exercício de “habilidades individuais”.
Lembrei do meu barco cheio de amigos, lembrei do mergulho, como aglutinador de pessoas com interesses e objetivos comuns, de todas as vezes que o churrasco reunia mais mergulhadores que o próprio mergulho, mas lembrei também de pessoas que eu conheci e que juravam ter mergulhado em navios que não existem, lembrei de submarinos, que velhos mergulhadores também descreviam nas suas estórias e que mesmo vasculhando essas marcas, com sonar e mergulhando eu nunca os encontrei, lembrei de todas as vezes que fui enganado, lembrei de instrutores que transformavam o treinamento numa sucessão sem fim de mergulhos, porque queriam logar o maior número possível para ganhar uma plaquinha com seu nome escrito nela, transferindo de forma absolutamente desprovida de ética comercial ou profissional, o custo desses mergulhos para o check out dos alunos, lembrei de processos que culminaram com a expulsão de instrutores mal carater, lembrei de novos instrutores, hoje mais informados, mais atentos a evolução do mergulho e conclui feliz que “El capitan”. embora ainda esteja solto por ai, devia ser preservado pois trata-se de uma espécie, que comum no passado, hoje, graças a evolução, encontra-se emeaçada de extinção.
Tomei mais um gole de cerveja e atendendo a pedidos fui nadar com as crianças.


Abraços e bons mergulhos

Marcelo "Moorea" Polato

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