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Navios trocados

Tudo começou no terceiro mergulho realizado no Campos em 09/08/2000, nos dois primeiros mergulhos, muito pouco foi visto, pelas condições de fundo e pelo objetivo inicial, que não era outro senão descobrir se aquela elevação no sonar era mesmo um navio ou mais um dos tantos parcéis que haviamos encontrado ao largo da Ilhabela.
O tempo passava lento durante os longos puxões no cabo da âncora e a medida que os metros no computador, preso ao meu pulso esquerdo, iam aumentando, as imagens na minha mente eram substituidas pela atenção, que se redobrava a medida que a luz externa desaparecia, a medida que o azul intenso das águas do oceano era substituido pelo preto da profundidade, a nosso velha conhecida, a termoclina dos 35/40 metros estava lá, ao entrar nela, a temperatura baixava, pela leitura do computador, de 23 para 17 graus, com ela caia também a visibilidade, que cruzando os 45 metros, já ficava próxima do zero, o cabo apenas no tato era percebido, posicionei a lanterna primária sobre a mão direita e surpreso, constatei que a visibilidade não era tão ruim assim, devíamos ter perto de 2 metros, o que naquele lugar não era mal.
Aos poucos surge um vulto, pedaços de rede bailavam a minha frente, ao sabor da correnteza, bem mais fraca no fundo do que na superfície, pareciam ter vida, pareciam curiosos, inclinando-se em minha direção, era o sinal de que o casco estava logo ali, o barulho do trimix entrando na asa era o som da freada, a longa descida havia terminado e o casco surgia nítido a minha frente, havíamos fundeado sobre o convés, nosso ferro, enroscado a uma das portas de acesso aos porões, me dava certeza de firmeza necessária para clipar minha carretilha na corrente da ancora, ela era nosso seguro de retorno, afinal uma descompressão a deriva naquelas condições trazia uma lista de riscos que nenhum de nós gostava de imaginar.
Nos segundos que demorei preparando a carretilha, pude perceber por sobre meu ombro uma nova luz, era Roberto que chegava no fundo, o planejamento era atravessar o convés, do través de boreste, onde estávamos até o traves de bombordo e depois descer pela lateral do casco, perpendicularmente, procurando o campo de destroços que havíamos encontrado no segundo mergulho.
Seguimos sobre o convés, alaranjado pelo coral sol, em alguns momentos mudando para amarelo, delícia dos biólogos pensava eu, ainda mais depois que soube que e única ocorrência daquele coral conhecida em São Paulo era aquele navio, para nós, ele era um inimigo, as queimaduras e as feridas no rosto, que atribuíamos ao coral, não sei se com ou sem razão, nos faziam manter uma distância segura dele sempre que possível.
Chegamos ao través de bombordo e ao iluminar os metros que nos separavam do fundo, a luz se perdeu no vazio, fiz uma amarração num ponto não cortante e iniciei a descida, o lodo surgiu, alguns metros abaixo, não resisti e testei a densidade, o braço afundou, mesmo sem muita pressão, até a altura do cotovelo, muita coisa interessante e que possivelmente ajudaria na identificação do navio podia estar enterrada ali, mas o dilema era o habitual, se fosse iniciada a procura, poderíamos localizar peças menores, enterradas, mas a visibilidade seria reduzida a zero em poucos segundos, retornaríamos até o convés seguindo apenas o cabo, numa situação dessas, um enrosco, uma rede, ou um problema em equipamento onde fosse necessária a intervenção do dupla podiam ser sinônimo de desgraça.
A contrapartida era seguir, sobrevoando o lodo e mudando a batida de perna, para evitar ao máximo deslocar o sedimento do fundo, procuraríamos peças maiores, que pudessem ser vistas saindo do lodo e faríamos o reconhecimento de uma área maior.
Como a opção em caso de boa visibilidade é sempre explorar o maior área possível, deixando o “garimpo” para situações de visibilidade restrita, optamos pela lógica e seguimos em direção a proa., pedalando um metro acima do lodo.
Poucos metros a frente, um pedaço de tubo, de formato cilindrico, com as bordas arredondadas chamou minha atenção, podia ser um pedaço da chaminé, mas era muito espesso, as bordas arredondadas deixavam claro que não se tratava de um pedaço qualquer de tubo, mas de uma peça com função bem definida, nos aproximamos e pudemos ver detalhes do interior desse nosso tubo.
A visibilidade era baixa e a havia uma peça no centro do tubo, estava coberta de redes, deitada e parcialmente coberta de lodo, hesitei por alguns momentos, pairando sobre ela, revolver o lodo ali seria transformar a pouca visibilidade na escuridão absoluta, mas não restava dúvida, era uma metralhadora, não resisti e me aproximei da boca do cano, tirei a luva da mão direita e tentando definir o calibre coloquei o indicador lá dentro, o aço enferrujado agiu rápido e uma mancha verde saindo do cano indicava o corte, ri, dentro da máscara e lembrei que as frequencias de infravermelho nunca chegaram até ali, o sangue fica verde naquela profundidade.

Final de mergulho e as perguntas permaneciam. O que fazia a arma ali ???

Teriam armado o Campos durante a guerra ??

Novos mergulhos iam acontecendo com a descoberta do casario e com eles novas questões iam se juntando a quase já esquecida arma, caída no lodo quase 10 metros abaixo, a medida de boca excedia em quase dois metros a do Campos !!

A configuração do casario não batia com a única foto do Campos que tinhamos, a quantidade de privadas e pias no segundo nível, indicava a presença de cabines, que em um navio cargueiro não deveriam estar ali, o casario era curto demais.....
Robertão foi o primeiro a encontrar porcelana, chinesa como deve ser nos bons mergulhos, mas de um importador californiano que nunca forneceu nada ao Lloyd brasileiro, proprietário do navio quando ele foi torpedeado.

O casco soldado na época da construção do Campos ainda era um sonho futurista, mas uma característica comum dos Liberty Ships.
Começamos a achar material elétrico, tanto leve como pesado, todo ele americano, não fazia sentido num navio construido na Alemanha...mas faltava a/ peça decisiva. Iam se juntando aos indícios outros mais, sempre apontando na direção de um liberty ship, vidros de molho e de temperos, americanos, registros e válvulas, americanos, um espremedor de laranja de pyrex encontrado, (Sunbeam) também americano, uma moeda de um penny australiano era a ovelha negra num conjunto de peças americanas.
Em 06/07/2002 tres dias após o 59 aniversário do Elihu no Fundo, zarpamos de Ilhabela para mais um mergulho, Eu, Lúcio “Pardal” Engler (Scubatec) e Régis Ianarelli (NAUI Tec) iríamos para o fundo o Celo seria nosso safety, as condições de mar prometiam, uma calmaria entre duas frentes frias nós dava a janela de alta pressão necessária para manter o mar calmo por um ou dois dias.

Fundeamos com correnteza forte, mas ansiosos e apostando na visibilidade caímos na água otimistas, no fundo, a visibilidade decepcionou, onde esperávamos 2 ou 3 metros de visibilidade, considerada muito boa para esse navio, nos melhores momentos tinhamos algo em torno de 1 metros, fechando algumas vezes para 0,5 metro e menos.

Planejávamos varrer um pedaço do convés, como diz o Lúcio, garimpando, a procura de sinais e evidencias que pudessem levar a uma identificação positiva.
Num determinado momento Lúcio sinaliza forte no cabo me chamando, Régis e eu seguimos até ele, 2 ou 3 metros ao nosso lado e vimos em suas mãos o que inicialmente pareceu ser um cartucho de calibre .50, peneirando a área ao redor encontramos outros mais, eles podiam ser a peça chave mas nenhuma das inscrições era visível no fundo, foram para um saco de coleta algumas das peças que pareciam estar em melhor estado, quando olhamos nos timers vimos que já era hora de subir, 29 minutos haviam se passado no fundo.

Seguimos para a deco nos nossos procedimentos normais, a correnteza ficando bem mais forte no raso, fazia os mergulhadores no cabo parecerem bandeiras, na superfície, nosso marinheiro Daniel, vigiando o horizonte, na eventualidade de algum navio aparecer em rota de colisão, ele nos rebocaria para longe do perigo.
A bordo examinamos com mais calma alguns cartuchos e a marca 20mm MK2 era visível em dois deles, além disso uma inscrição que parecia NOEN indicaria, caso fosse confirmada, munição de uso nos navios da marinha americana.
Já em São Paulo, nossas suspeitas se confirmaram, trata-se de cartucho de uma peça de 20mm fabricado em 1942, modelo MK2 que era uma munição de uso geral, a mais utilizada em armas anti-aéreas na segunda guerra até o surgimento dos kamikases, onde ela se revelou pouco eficiente. NOEN era o Naval Ordnance Engineering Laboratory, que desenvolveu e fabricou munição para a marinha americana de 1940 a 1950.
Acreditamos assim ter virado mais uma página na estória dos naufrágios de São Paulo, não temos como positiva a identificação do Elihu B. Washburn em 23 59 S 045 27 W, mas sabemos que ali repousa um Liberty Ship.
Falta agora saber quem é quem já que o navio em 24 20 S 045 34 W foi incialmente identificado como Elihu, eu, torço para que realmente sejam dois, deixando assim o Campos na classe dos ainda não encontrados.

Marcelo "Moorea" Polato (07/2002)

O texto acima é de 2002 e retrata suspeitas minhas que vinham desde 2000, tres anos se passaram, e ainda não há identificação positiva de nenhum dos nossos dois grandes navios misteriosos, outros navios repousam no fundo, durante esses anos, tivemos a oportunidade de encontrar mais alguns, fazendo aquilo que mais gostamos, explorar naufrágios
Vimos felizes o surgimento de novos grupos de pesquisa, infelizmente a maioria pesquisando só na rede mesmo, alguns poucos, se lançando timidamente ao mar, mas correspondendo as nossas expectativas, para que o mergulho em naufrágios no Brasil cresce e evolua
Mudamos equipamentos, evoluimos procedimentos, descobrimos quem eram as pessoas amigas e quem eram as interessadas apenas em roubar marcas de GPS, aumentamos bastante, mas diminuímos quando muitos viram que a emoção de levantar suspensão intocada por dezenas de anos no fundo era reservada aos mais persistentes apenas
Encontramos orcas e baleias, pinguins cruzaram nossa proa com nos saudando por tentar levantar um minusculo pedaço do manto negro que esconde os mistérios do mar, Netuno nos reservou surpresas, muitas agradáveis, algumas poucas tristes, mas nos olhos da baleia que mergulhou conosco durante a descoberta do novo navio da Queimada, pude ler que ainda há mais mistérios, muitos mais, esperando quem quer que se proponha a ir até lá desvenda-los.
Me alegra hoje ver que todas as novas descobertas e fatos ao longo desses tres ultimos anos apontam para confirmar minhas suspeitas, minha vontade de mergulhar procurando navios, mais longe, mais fundo, por mais tempo, a cada dia é maior.


Marcelo "Moorea" Polato

08/2002

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