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Principe

Numa manhã escura e fria de abril, o despertador tocou as 5:00, conferi novamente o relógio, o que eu já tinha feito várias vezes durante aquela noite e vi que era hora de sair da cama, após uma noite de ansiedade, rolando de um lado para o outro, dando cochiladas e esperando as horas passarem.
Pulei do beliche e vi que meu amigo Martins já estava de pé, na cozinha do chalé alugado dois dias antes.
Ainda com o vista bem embaçada pela noite mal dormida, principalmente devido à expectativa do mergulho programado para o dia, me olhei no espelho do banheiro, enchi os pulmões de ar e depois de um banho gelado, conclui que estava inteiro e que a noite tão demorada, finalmente, tinha passado, sempre ouvira falar que essa apreensão e ansiedade não eram boa coisa para quem ia mergulhar, mas era impossível controlar.
Depois de um lanche rápido e um copo de leite, rumamos para a marina, onde o barco esperava já na água. Uma brisa leste soprava fraca no Saco da Capela e o tom do céu mudava rapidamente do vermelho intenso para o laranja, com o sol querendo despontar por sobre o morro.
Entre as infindáveis viagens do carro para o bote e do bote para a lancha, carregando uma quantidade de equipamento que parecia não terminar nunca, ia pensando como estaria a água, se haveria alguma corrente forte no fundo, temperatura, visibilidade....
Tudo carregado, acendemos os motores e enquanto eles esquentavam, confirmamos uma última vez todo equipamento a bordo : cilindros cheios, reguladores, máscaras, nadadeiras e muitos outros itens de um check list que parecia mais preparação para uma cirurgia cardíaca.
O marinheiro soltou os cabos da poita, lentamente começava nossa marcha rumo a Pirabura; aos poucos, os outros barcos ficaram para trás, balançando suavemente nas marolas, que eram as únicas e causadas pelo nosso barco. Alcançamos o meio do canal, enquanto os motores eram acelerados lentamente até o barco atingir velocidade de cruzeiro, o sol aparecia por sobre a Ilhabela, eram 6:12 da manhã.
Aos poucos, a Carbrasmar 26 ia diminuindo as muitas milhas que nos separavam da Pirabura, à medida que essas milhas diminuíam, diminuía também a apreensão e a expectativa que eu vinha sentindo, finalmente .chegara a hora, tanta espera agora era recompensada com um mar de almirante, nenhuma marola, o céu totalmente azul, sem nenhuma nuvem, se um dia prometia ser perfeito, era aquele.
A previsão do tempo confirmava nossas expectativas, enquanto a São Sebastião Rádio, nos informava no canal 24, que para toda área Bravo, as ondas em mar aberto eram inferiores a 1 metro e que mesmo em Charlie, elas estavam entre 1 e 1,5 metros, com ventos soprando dos quadrantes Whisky (W ou Oeste) a Sierra Whisky (SW ou Sudoeste), entre 1 e 8 nós de velocidade e ainda que, para todo sul oceânico, não havia nenhum alerta de rádio ou previsão de mal tempo e que as condições deviam se manter constantes por todo o dia.
Sentados na popa da lancha, íamos apreciando a paisagem que se descortinava ante nossos olhos, enquanto a maioria ainda dormia naquela manhã de sol, deixávamos o centro de Ilhabela, deserto, pelo nosso través de boreste.
Já na altura da ponta das Canas, ia pensando nos detalhes do naufrágio. Como teria sido o choque, a explosão das caldeiras, o afundamento em 4 ou 5 minutos, todo aquele horror a bordo, pessoas trancadas nos porões e na terceira classe ? Nesse tempo iam passando praias e praias, intercaladas pelo verde intenso da mata exuberante que cobre toda a Ilhabela.
Enquanto pescadores começavam a procura pelo camarão e outros examinavam armadilhas de peixe, rumávamos para o que prometia ser um mergulho inesquecível, num lugar prejudicado pelas condições de mar, onde normalmente vagas lambem a costeira e fortes correntes varrem o fundo, parecia que Netuno nos reservara as melhores condições possíveis.
Alguns poucos pescadores, ao cruzar conosco, davam as mãos, acenavam. Que gente diferente essa do mar, que se cumprimenta sem se conhecer, que com destinos e objetivos tão distintos, vagam sobre o mesmo mar, nele procurando o sustento e a descoberta, o peixe e a aventura...
Quando descobrimos a ponta da cabeçuda, o vento leste começou a aumentar, algumas marolas se formaram, num mar que até então parecia mais uma piscina, nada que atrapalhasse o mergulho, mas, de repente, a sensação de estar navegando era acentuada pelo balanço do barco e vinha interromper meu devaneio.
O farol da Pirabura ao largo boiou, Martins gritou lá da frente que era hora de montar o equipamento, a primeira grande dose de adrenalina caía no sangue. Pulei do meu descanso, abri o saco com a minha tralha toda, peguei de lá do fundo o colete, que comecei a montar num cilindro de aço de 18 litros, que de tão pesado que era, faz os de hoje parecerem de alumínio; regulador montado, segundo regulador montado na torneira agá, todas aquelas mangueiras em posição, umas passando por baixo das outras, o que para nós era algo comum, para mergulhadores iniciantes poderia parecer um labirinto de mangueiras e reguladores; duas stages, cilindros extra, que são presos por mosquetões lateralmente no colete, seriam levadas por cada um de nós, aumentando a quantidade de relógios e mangueiras, fazendo mergulhadores mais parecerem astronautas.
Revisei o plano de mergulho; planejávamos um mergulho a 38 m de profundidade e de 40 minutos de duração; o meu consumo de ar, estimado em 18 litros por minuto na superfície, seria de 3.600 litros de ar, sem descompressão e sem a margem de segurança, adicionei 50% de ar de reserva para o mergulho, aumentando o volume total para 5.400; seriam feitas duas paradas, uma a 6 metros e uma a 3, a primeira de 5 e a segunda de 25 minutos, com um consumo de ar na descompressão de mais 864 litros de ar, totalizando 6264 litros ; carregávamos 4140 no cilindro principal e 2450 em cada uma das stages, totalizando 9040 litros de ar, seria o suficiente apenas uma delas, mas, em caso de ruptura de um o-ring, ou um problema de regulador, uma delas era totalmente redundante e servia como acréscimo de segurança.
O plano de contingência, também foi revisado : cada um de nós levava uma lanterna principais e duas secundárias, duas carretilhas, um lift bag de 100 litros e um de 50, que seriam utilizados caso não fosse possível localizar o cabo de subida e fosse necessária uma subida e descompressão a deriva. Nesse caso, seria clipado o cabo de uma das carretilhas ao lift bag, ele seria cheio e enviado à superfície, as paradas seriam feitas com o mergulhador preso a esse cabo.
O problema nesse tipo de descompressão é a deriva do mergulhador pela corrente, que pode afastá-lo do barco tornando difícil a sua localização. Como segurança nunca é demais, constatei que a corrente seguia em direção à Ilha de Búzios, então, caso fosse necessária uma subida dessas, sabíamos que não seríamos jogados contra as pedras.
Enquanto vestia o neoprene, continuava pensando em quanto planejamento, quanta espera, nas três saídas anteriores que tinham sido canceladas em função de mal tempo e concluía que se vestir para um casamento era bem menos complicado que se vestir para o Asturias.
Chegamos ao local, onde uma bóia marcava a posição do naufrágio, ela já estava ali há quase um mês, tinha sido colocada dias antes da data programada para o primeiro mergulho, que tinha sido cancelado até aquele dia.
Adiantamo-nos uns 100 metros em relação à bóia, para após largar o ferro, voltarmos com a corrente até a popa ficar bem próxima a bóia.
O marinheiro correu a proa, largou a âncora que parecia não chegar mais ao fundo, eu via metros e mais metros de cabo sendo puxados para o fundo, até que, finalmente, o ferro alcançou a areia do fundo, alguns minutos mais e o barco já estava firmemente ancorado.
Pegamos então uma stage, que seria usada como cilindro de emergência, presa a um cabo de 6 metros, foi mandada para dentro da água pela alheta de boreste, poderia ser usada durante a descompressão, em caso de problemas com outros cilindros; na verdade, nós não sabíamos bem qual seria a utilidade dela, era totalmente redundante, pelos nossos cálculos de consumo, o ar que carregávamos era mais do que suficiente, mas, depois de tanto planejamento e de tanta espera, não custava nada adicionar segurança ao mergulho e de qualquer maneira, era algo reconfortante saber que havia mais um cilindro ali, a disposição caso fosse necessário.
Martins foi o primeiro a cair na água e enquanto recebia e clipava suas duas stages, eu já estava a seu lado, clipei minhas duas stages também, testei minhas lanternas, testei todos reguladores, examinamos nossos cilindros, um inspecionando o do outro, a procura de vazamentos, coletes, traqueias, mangueiras, manometros, sinalizamos OK um para o outro, dei uma última respirada no ar da superfície e iniciamos nossa descida. Ele foi na frente, enquanto minha mão esquerda corria os metros de cabo, vendo a alguns metros a minha frente as suas nadadeiras e o cilindro nas suas costas dançando de um lado para outro conforme ele pedalava, eu lembrava de uma frase do Cousteau que dizia que na água nos transformávamos em anjos. Pensava que estranha asa seria aquela, de aço, nas nossas costas, sem reparar que minha viagem na frase do Cousteau, demorou alguns minutos, logo comecei a definir o pedaço do navio onde o cabo estava amarrado.
Tocamos o fundo, uma última checagem em relógios, pressão e profundidade, que nessa hora era de trinta e cinco metros, havíamos previamente combinado de conduzir o mergulho solo, contrariando regras básicas de segurança, na época era comum fazermos isso e só mais tarde, o desastre nos ensinou o valor do mergulho em dupla.
Cada um iria para um lado para evitar que a suspensão atrapalhasse quem estava atrás, voltaríamos ao ponto de abandono do cabo em 35 minutos. Segui meu caminho, dando uma olhada na bússola, que com certeza no meio daquele monte de ferro no fundo não devia estar funcionando, ri dentro da máscara da atitude impensada, tentando entender se seria efeito da narcose ou pura distração.
Em meio àqueles montes de ferro, pedaços de estruturas caídas, segui rumo à popa do navio, imaginando como ele seria antes das operações de resgate da carga, que tinham consumido muitos quilos de explosivos para abrir espaço até o estanho e cobre que ele carregava em seus porões. Subitamente, como se tivesse se materializado ali na minha frente, surgiu um mero, quase do meu tamanho, veio calmamente em minha direção, parando a um ou dois metros de distância, ficou me observando por alguns segundos, até concluir que eu não representava perigo algum, me deu as costas, desaparecendo displicente em meio ao monte de ferro retorcido. Segui meu rumo, descendo pela lateral do casco até atingir 38 metros de profundidade, que era o máximo planejado.
Nesse ponto, pedaços do navio estavam na areia, resolvi dar uma olhada mais detalhada e notei, em meio ao sedimento do fundo, um cabo de talher. Ao remove-lo constatei tratar-se de um garfo, ao lado dele mais um garfo, algumas colheres e um cabo de faca, a lâmina não sobrevivera a ação do mar e tinha desaparecido, restando apenas o cabo que parecia ser de prata.
Após mais alguns minutos de mergulho, conferindo meu relógio, notei que já estava com 31 minutos de fundo, voltei rumando ao cabo de subida e cheguei nele com 37 minutos. Como tinha ainda três minutos para iniciar minha subida, resolvi esperar pelo Martins, que logo apareceu, sinalizando um OK atrás do outro, emocionado com o sucesso do mergulho. Iniciamos nossa subida, de olho no relógio e no profundímetro, com um sentimento de satisfação, de conquista, de ter alcançado o objetivo. Logo depois, já podia ver o cilindro de descompressão balançando nos seis metros, a sombra do casco do barco; os primeiros 5 minutos da descompressão passaram rapidamente, parada OK, seguimos para a de três metros.
Como estava negativo, preso a bóia e na superfície as marolas estavam maiores do que as do início do mergulho, resolvi inverter a flutuação, estiquei o cabo do fundo e inflei um pouco o colete, agora estava preso ao fundo e o balanço da bóia não atrapalhava mais, alguma pequena alteração da profundidade causada pela corrente não chegava a atrapalhar a parada. Nesse momento, fechei os olhos e fiquei imaginando novamente o que teriam passado as vítimas, o horror do naufrágio ali em uma noite de mar revolto, não sei o que seria pior : ir para o fundo com o navio ou sobreviver ao redemoinho dele afundando e ficar na superfície, a poucos metros das rochas, onde estouravam ondas gigantes. Lembrava de estórias de caiçaras que cortavam dedos e mãos dos mortos que chegaram à praia da caveira, para roubar anéis e relógios.
Um tranco no ombro me trouxe de volta à realidade, os 25 minutos já tinham passado e era hora de voltar à superfície; os últimos três metros foram vencidos lentamente e quando tirei a máscara dei uma grande e profunda respirada no ar úmido do superfície, a garganta seca pedia água como se tivesse voltado de um deserto. Subimos a bordo com um sorriso que ia de orelha a orelha, nós dois falávamos simultaneamente, contando o que tínhamos visto sem querer ouvir o que o outro falava, começamos a rir, era hora de descansar, deitar e relaxar, enquanto o marinheiro dava infindáveis puxadas no cabo da âncora, que parecia não terminar nunca; os motores, que já tinham sido ligados, iam esquentando. No caminho de volta, viemos deitados no convés de proa do barco e entre os relatos exaltados de cada um de nós, gaivotas e fragatas sobrevoavam o barco, como se viessem nos congratular pela experiência.

Esse foi meu primeiro mergulho no Príncipe de Astúrias, era abril de 1986.


Marcelo “Moorea” Polato

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