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Principe, 90 anos depois


Tarefa árdua essa minha, tentar descrever, tendo como ferramentas apenas as palavras, um mergulho único. Talvez deva começar falando sobre minha paixão pelos navios, em especial navios da dimensão do Principe de Asturias, ou apenas “O principe”, como costumamos, nós mais intimos, nos referir a ele.
Essa “dimensão” é mais comum aos exploradores de naufrágios do que as pessoas que ainda não tiveram a felicidade de faze-lo, não se mede apenas pelo tamanho do navio, mas pela profundidade do mergulho, tornando-o seletivo de imediato, pelas dificuldades de acesso, em um dos locais de navegação mais dificil da Ilhabela, pela constante presença de fortes correntes marítimas cancelando 8 em cada 10 tentativas de mergulho, pela visibilidade normalmente ruim, pelos complicadores no fundo, estruturas instáveis, devido as sucessivas operações de resgate, que consumiram explosivos suficiente para uma guerra, tonando um risco toda pentração devido as possibilidades de desmoronamento, pelas passagens estreitas e pelos enroscos que podem facilmente prender para sempre um mergulhador no interior dessas estruturas, pelas possibilidades de corte e perfuração devido as chapas, afiadas como navalhas, que quando cortam as mãos, geram apenas motivos para risadas, mas o mesmo acidente com uma mangueira de ar cortada, no fundo. não é item de lista de natal de nenhum explorador de naufrágio, assim, as incursões são sempre lentas e cautelosas e principalmente, pela quantidade de vítimas, o que faz que seja necessário, além de um excelente preparo fisico, preparo espiritual e mental, a benção e a permissão de Netuno.
Adentrar um navio é expor-se ao risco, assim treinamento, preparo e times com pessoas treinadas e experientes são pontos fundamentais, os exploradores de verdade costumam brincar, que quando o assunto e penetrar estruturas submersas, principalmente as pouco ou nunca visitadas, existe apenas um dogma, na hora de sair, a visibilidade será zero.
As bolhas são um inimigo silencioso, agindo contra o mergulhador a partir do ponto em que ele começa sua incursão em ambiente de teto, a ferrugem, detritos e decomposição, que ao longo dos anos se fixam as chapas, não importando em que posição elas se encontram, são soltas pelas bolhas ao bateram no teto, assim, uma cortina marrom avermelhada, de ferrugem e sedimentos sempre se fecha, a medida que o mergulhador penetra o navio, tornando o retorno um exercício de navegacão e uma questão de sobrevivencia baseada na memória e em nosso sistema de navegaçáo biológico, já que tantos metais de diferentes potenciais elétricos no fundo deixam qualquer bússola pra lá de perdida.
O bom comandante sabe que não deve temer o mar, mas manter o respeito pelas ondas, aprender a “ouvir” o vento e “ler” as nuvens são aulas do pré-primário de quem se aventura mar adentro, some a isso um fundeio a 15 metros da costeira, condições de onda que raramente são inferiores a 2 metros e o vento, que no extremo leste da Ilhabela roda sem nenhum aviso e fica fácil começar a entender a complexidade do Principe.
Superadas essas exigências iniciais vem a nossa parte predileta, o mergulho. A medida que diminuimos a distância que nos separa do fundo, a expectativa sempre aumenta, segundo minha filosofia, um grande navio é como uma grande mulher, complicados ambos, por concepção, sujeitos a interferências muitas vezes incompreensiveis aos homens racionais e mais objetivos e principalmente, possuidores de um gênio forte, que faz com que seja sempre essencial agrados e afagos, assim, todo grande navio é um sistema altamente dinâmico, contrariando o que imagina a maioria das pessoas. Tentar visitar o mesmo lugar duas vezes, mesmo em se tratando de grandes estruturas é apenas uma possibilidade, nunca uma certeza, em contra partida a quantidade de imagens inéditas, de novas surpresas e de novas alegrias é uma constante, grandes navios, são por definição seres em constante movimento.
Desde 1986 conheço o Principe e mesmo depois de algumas, ou várias, centenas de mergulhos lá, ainda termino cada novo mergulho juntando peças ao imenso quebra cabeças que é entende-lo.
Do leme, que repousa caido a bombordo, passando pelas caldeiras, uma delas totalmente aberta graças a explosão, até as muitas garrafas de vinho e conhaque onde um dia foi o restaurante da primeira classe, ele sempre reserva, aos olhos mais atentos e aqueles mais persistentes emoções que são muito dificeis de descrever em palavras.
Dentre as várias “cenas” marcantes, uma das que sempre visito é um alinhamento de escotilhas, dezesseis para ser exato, em uma parte quase emborcada do casco, todas estão abertas, muitas com os vidros abertos, ainda intactos e nós, meros expectadores da tragédia, imaginamos os momentos de pavor, que foram os ultimos, daquelas almas que ficaram presas no interior do navio, vendo se transformar em mar, o que antes era luxo e pompa.
Outro ponto muito marcante foi a exploração do porão numero 3, onde misteriosamente não há carga, dizem que era o local de transporte dos refugiados, a quantidade de restos mortais leva a essa conclusão, por respeito aos mortos nós nunca fotografamos ou filmamos nada daquilo, mas aqueles poucos que penetraram essas estruturas são testemunha dos restos, nos pontos mais baixos do relevo de fundo, onde sempre há uma massa, acinzentada, entremeada de cabelos e dentes, imagina o explorador ser aquilo que não mais se decompoem, mesmo após quase um século.
Ano após ano, mergulho após mergulho o Principe nos conta um pouco mais da sua história, nos deixa entender um pouco mais a tragédia, das versões que falam sobre um torpedo, sobre perseguições e abalroamento nos interessam apenas as que podem ser contadas olhando, explorando e entendendo aquilo que restou no fundo, depois do acesso a quinta caldeira, a única que permanecia intocada, a explosão deixa de ser suposição e passa a se realidade, hélices da carga que foram encontradas em 2004, que contrariando as informações não eram de bronze, mas de ferro, as garrafas de “Jerez Hermanos Gutierrez” que nunca foram vistas até 2001, encontradas com o selo de chumbo do gargalo ainda intacto, infelizmente o conhaque estava azedo, as torneiras na banheira de um dos camarotes especiais, onde se le “salada caliente” e “salada fria” e nos fazem imaginar como era engraçado banhar-se em água salgada, as descargas dos vasos sanitários, a vapor, modernas e super higienicas até para os padrões atuais, a fineza dos talheres de prata, principalmente os da primeira classe, isso sem falar na prataria do serviço de bordo, impar e exclusiva, como é até hoje tudo no Principe.
Assim, quando me perguntam se não é repetitivo explorar suas estruturas, depois de tantos mergulhos e tantos anos sou obrigado a responder que compreender um navio desse porte, entender e poder somar, ou muitas vezes modificar detalhes de uma tragédia, não é apenas um hobby ou uma diversão de final de semana, mas um presente de Netuno em um navio que se mostra novo a cada dia e mesmo naufragado, mantem sua nobreza, quase 90 anos depois !

Marcelo "Moorea" Polato


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